21 de maio de 2018

A Paixão Segundo G.H.: Uma Odisseia Pelo Ser

Lembro dos vários sentimentos que tive quando li meu primeiro livro da Clarice Lispector, A Hora da Estrela, ainda na adolescência. Foi uma experiência completamente diferente de tudo que eu lera durante a vida, que na época ainda era pouco. O narrador intrometido que sempre tenta te fazer desprezar Macabéa, ao mesmo tempo que aos poucos te faz entender o quando ele a ama em sua ordinariedade.

Em A Paixão Segundo G.H., publicado em 1964, Clarice nos leva por um enigma, um labirinto do ser. A autora então usa de artifícios filosóficos e existencialistas no texto para te dar uma resposta que não existe, uma resposta para os sentimentos e sensações humanas.

O romance se inicia com G.H. refletindo sobre como o seu ser encontra-se desorganizado. A mesma dá a entender que um dos elementos que fizeram-na sentir esse caos interior é alguém que a amou, mas que agora está distante, fazendo com que G.H precise lidar com o abandono e a solidão, uma nova fase da vida sem algo (ou alguém) que durante muito tempo foi considerado insubstituível por ela. Uma terceira perna, que agora não existe mais e faz com que G.H. se questione se era realmente era necessária para seu equilíbrio.

Nesta tentativa de reorganização emocional e interior, G.H. decide fazer uma limpeza em seu apartamento, começando portanto pelo quarto, o qual ela imaginava ser um local sujo e desarrumado, da empregada, que não há muito tempo demitira. No entanto, ao chegar no quarto, ela depara-se com um lugar organizado (na medida do possível). Ao abrir as portas do armário da empregada, G.H. é surpreendida pela aparição de uma barata, que a mesma esmaga com a porta logo em seguida em um impulso de repulsa. Essa ação desencadeia nela vários pensamentos sobre seu passado e suas questões interiores,  coisas que G.H. havia reprimido em sua memória. Ela sente-se culpada por ter interrompido uma vida, enxergando-se naquela criatura.

É interessante notar que assim como em A Metamorfose de Kafka existe no texto uma metáfora para o estranho naquela barata (no caso da obra de Kafka não se sabe se é realmente uma barata). Em A Metamorfose o estranho existe, principalmente, para o mundo exterior o qual Gregor Samsa se mostra. Um mundo que o explora de diversas formas impedindo-o de focar no “eu”. Já em A Paixão Segundo G.H., o estranho é trazido para o interior da personagem. O mundo a enxerga como um modelo — mulher de classe média privilegiada e feliz —, o que não quer dizer que seja como ela realmente é. G.H. demonstra ao leitor, o qual ela chama (mesmo que indiretamente) de “meu amor”, uma solidão que permeia toda a sua vida e que a persegue com o fantasma do abandono e da dependência do outro.


No trecho conhecido como “Minha rouquidão” a narradora (que é a própria G.H.) faz uma metáfora entre a morte da barata causada por ela e um aborto, que supostamente teria sido realizado pela mesma. No mesmo trecho é feito uma intertextualidade com a oração Ave Maria: “E não há braços que me recebam agora e na hora do nosso deserto, amém.” o que pode significar, uma vez que esse pensamento é feito por G.H. com sua mãe em mente, o arrependimento que o ato a causou, forçando um distanciamento do mundo e das pessoas ao seu redor. Veja: “Interrompi uma coisa organizada, mãe, e isso é pior que matar, isso me fez entrar por uma brecha que me mostrou, pior que a morte, que me mostrou a vida grossa e neutra amarelecendo”.

A narrativa de A Paixão Segundo G.H. é repleta do chamado fluxo de consciência, que permeia também outras obras de Clarice. Aqui a narração torna-se um grande monólogo interior — o que faz com que você entre cada vez mais no labirinto psicológico dessa personagem que pode facilmente ser identificada pelo leitor como o “eu”.

Apesar de acreditar que Clarice subestima um pouco o seu leitor quando diz no início do livro que ficaria feliz que o mesmo fosse lido apenas por leitores de “alma formada”, creio que A Paixão Segundo G.H. é um livro que nunca deve ser retirado de sua cabeceira. Suas compreensões são impossíveis de serem obtidas apenas em uma única leitura e lê-lo em diferentes momentos de sua vida certamente o trará novas visões do que seria o “ser” nessa obra. A Paixão Segundo G.H. é em sua essência uma jornada pelo “eu” em busca do autoconhecimento e da autonomia emocional e deve ser lido por todos. É um livro que deve te acompanhar em diversos momentos da sua vida, assim te ajudando em sua busca por entender o que significa ser humano.